“Era uma vez uma cozinha num palácio, uma das mais
grandiosas que o mundo já vira. Havia panelas e frigideiras penduradas em todas
as paredes e deliciosos ingredientes empilhados, esperando para serem
preparados. No meio da cozinha havia uma enorme chaminé e sob ela um magnífico
fogão de ferro.
Cinquenta cozinheiros trabalhavam dia e noite para preparar
a comida para a mesa do rei. Havia tortas recheadas com carne de pavão,
carneiros assados, churrascos e travessas e mais travessas de almôndegas, pois
todos sabiam que o prato favorito do rei era almôndegas ao molho branco
cremoso.
Bem, um dos cozinheiros subalternos tinha acabado de
preparar a última travessa de almôndegas. Ele abriu a grande porta de ferro do
forno e inseriu a travessa. O prato começou a arder enquanto a gordura derretia
e a temperatura subia. O calor se tornou cada vez mais sufocante, e as
almôndegas começaram a cozinhar. Elas gritaram para a sua líder: ‘Socorro,
socorro, faça alguma coisa, por favor, estamos sendo cozidas vivas. Faremos
qualquer coisa por você, mas precisa salvar nossa vida!’
A almôndega líder, que era a maior de todas, ergueu-se o
máximo que pôde e falou às suas companheiras almôndegas: ‘Tenham fé, ó
almôndegas, eu as salvarei. Prometo que não seremos cozinhadas, mas que a salvação
chegará da maneira mais extraordinária!’ ‘Qual será nossa salvação, ó grande
líder?’ ‘Virá um remédio refrescante para aliviar suas queimaduras e uma cama
perfumada para vocês deitarem e descansarem.’
Nesse exato momento, a porta do forno foi aberta e um molho
branco frio foi vertido sobre as almôndegas. Elas suspiraram de alegria e
agradeceram a Deus por salvá-las do fogo terrível.
‘Vocês não me escutaram, companheiras almôndegas’, declarou
a almôndega líder, ‘pois prometi um remédio refrescante e, vejam só, ele
chegou’. Mas então o calor começou a aumentar novamente e algumas das
almôndegas, aquelas mais perto da borda da travessa, foram assadas vivas. ‘Ó,
líder’, gritaram as outras, ‘por favor, salva nossa alma. Vamos segui-la até os
confins da terra. Simplesmente nos salve desde calor horrível.’ ‘Fiquem calmas,
minhas almôndegas’, disse a almôndega líder. ‘Acalmem-se e o fogo resfriará.
Prometo a vocês.’
Naquele momento, a porta do forno abriu novamente e a grande
travessa foi cuidadosamente removida pelo cozinheiro. Ele a sacudiu um pouco,
para garantir que as almôndegas não estavam grudando no fundo e virou a
travessa sobre uma camada de arroz cor de açafrão. O prato estava adornado com
ervas e folhas perfumadas. As almôndegas foram transportadas da cozinha pelos
corredores do palácio até a sala do trono, onde o próprio rei estava jantando
com seus convidados.
As almôndegas não conseguiam acreditar na virada que houve
na sua sorte. ‘Eu disse a você que nossa má sorte se inverteria’, declarou a
almôndega maior. ‘Só precisam acreditar em mim, pois sou a líder’. As outras
almôndegas teciam elogios enquanto se ajeitavam na macia camada de arroz.
Subitamente o prato foi colocado diante do próprio rei.
Algumas das almôndegas foram ofuscadas pelo brilho das joias
no pescoço dos convidados, e outras foram dominadas pelo som dos músicos
tocando sobre um tablado na sala.
Mas então a irmandade das almôndegas foi removida um punhado
de cada vez, tiradas da travessa e servidas em pratos individuais. E, pior
ainda, bocas famintas ao redor da mesa começaram a devorá-las. ‘Ó, líder, nossa
líder’, gritaram as almôndegas restantes, ‘o que está acontecendo conosco? Nossas
integrantes estão sendo selecionadas e da maneira mais chocante. Estamos sendo
exterminadas.’
O próprio rei enfiou um garfo na travessa e perfurou seis almôndegas
de uma vez. ‘Traição!’, gritaram as últimas almôndegas. ‘Como isso pode estar
acontecendo conosco?’ A essa altura, a almôndega líder estava farta de ouvir
sobre os problemas que suas seguidoras almôndegas estavam encarando. Ela gritou
para as outras: ‘Vocês foram refrescadas pelo molho branco medicinal, não
foram?’ ‘Sim, fomos sim!’, gritaram as últimas almôndegas que restavam. ‘E
foram removidas do fogo terrível e colocadas sobre uma cama de arroz fresco e tranquilizante,
não foram?’ ‘Sim, nós fomos!’, disseram. ‘Bem, quando vão compreender que vocês são almôndegas
e que estão destinadas ao estômago de homens famintos?’
Logo em seguida, a almôndega líder foi garfada e engolida
inteira pelo rei. As últimas almôndegas na travessa continuaram a gritar,
berrar e protestar sua recusa a serem comidas. Mas a essa altura já não havia
mais ninguém para ouvir seus gritos.”
Tahir Shah,
Em Noites Árabes,
Página 325 a 327