quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

A história das almôndegas

“Era uma vez uma cozinha num palácio, uma das mais grandiosas que o mundo já vira. Havia panelas e frigideiras penduradas em todas as paredes e deliciosos ingredientes empilhados, esperando para serem preparados. No meio da cozinha havia uma enorme chaminé e sob ela um magnífico fogão de ferro.

Cinquenta cozinheiros trabalhavam dia e noite para preparar a comida para a mesa do rei. Havia tortas recheadas com carne de pavão, carneiros assados, churrascos e travessas e mais travessas de almôndegas, pois todos sabiam que o prato favorito do rei era almôndegas ao molho branco cremoso.

Bem, um dos cozinheiros subalternos tinha acabado de preparar a última travessa de almôndegas. Ele abriu a grande porta de ferro do forno e inseriu a travessa. O prato começou a arder enquanto a gordura derretia e a temperatura subia. O calor se tornou cada vez mais sufocante, e as almôndegas começaram a cozinhar. Elas gritaram para a sua líder: ‘Socorro, socorro, faça alguma coisa, por favor, estamos sendo cozidas vivas. Faremos qualquer coisa por você, mas precisa salvar nossa vida!’

A almôndega líder, que era a maior de todas, ergueu-se o máximo que pôde e falou às suas companheiras almôndegas: ‘Tenham fé, ó almôndegas, eu as salvarei. Prometo que não seremos cozinhadas, mas que a salvação chegará da maneira mais extraordinária!’ ‘Qual será nossa salvação, ó grande líder?’ ‘Virá um remédio refrescante para aliviar suas queimaduras e uma cama perfumada para vocês deitarem e descansarem.’

Nesse exato momento, a porta do forno foi aberta e um molho branco frio foi vertido sobre as almôndegas. Elas suspiraram de alegria e agradeceram a Deus por salvá-las do fogo terrível.

‘Vocês não me escutaram, companheiras almôndegas’, declarou a almôndega líder, ‘pois prometi um remédio refrescante e, vejam só, ele chegou’. Mas então o calor começou a aumentar novamente e algumas das almôndegas, aquelas mais perto da borda da travessa, foram assadas vivas. ‘Ó, líder’, gritaram as outras, ‘por favor, salva nossa alma. Vamos segui-la até os confins da terra. Simplesmente nos salve desde calor horrível.’ ‘Fiquem calmas, minhas almôndegas’, disse a almôndega líder. ‘Acalmem-se e o fogo resfriará. Prometo a vocês.’

Naquele momento, a porta do forno abriu novamente e a grande travessa foi cuidadosamente removida pelo cozinheiro. Ele a sacudiu um pouco, para garantir que as almôndegas não estavam grudando no fundo e virou a travessa sobre uma camada de arroz cor de açafrão. O prato estava adornado com ervas e folhas perfumadas. As almôndegas foram transportadas da cozinha pelos corredores do palácio até a sala do trono, onde o próprio rei estava jantando com seus convidados.

As almôndegas não conseguiam acreditar na virada que houve na sua sorte. ‘Eu disse a você que nossa má sorte se inverteria’, declarou a almôndega maior. ‘Só precisam acreditar em mim, pois sou a líder’. As outras almôndegas teciam elogios enquanto se ajeitavam na macia camada de arroz. Subitamente o prato foi colocado diante do próprio rei.

Algumas das almôndegas foram ofuscadas pelo brilho das joias no pescoço dos convidados, e outras foram dominadas pelo som dos músicos tocando sobre um tablado na sala.

Mas então a irmandade das almôndegas foi removida um punhado de cada vez, tiradas da travessa e servidas em pratos individuais. E, pior ainda, bocas famintas ao redor da mesa começaram a devorá-las. ‘Ó, líder, nossa líder’, gritaram as almôndegas restantes, ‘o que está acontecendo conosco? Nossas integrantes estão sendo selecionadas e da maneira mais chocante. Estamos sendo exterminadas.’

O próprio rei enfiou um garfo na travessa e perfurou seis almôndegas de uma vez. ‘Traição!’, gritaram as últimas almôndegas. ‘Como isso pode estar acontecendo conosco?’ A essa altura, a almôndega líder estava farta de ouvir sobre os problemas que suas seguidoras almôndegas estavam encarando. Ela gritou para as outras: ‘Vocês foram refrescadas pelo molho branco medicinal, não foram?’ ‘Sim, fomos sim!’, gritaram as últimas almôndegas que restavam. ‘E foram removidas do fogo terrível e colocadas sobre uma cama de arroz fresco e tranquilizante, não foram?’ ‘Sim, nós fomos!’, disseram. ‘Bem, quando vão compreender que vocês são almôndegas e que estão destinadas ao estômago de homens famintos?’

Logo em seguida, a almôndega líder foi garfada e engolida inteira pelo rei. As últimas almôndegas na travessa continuaram a gritar, berrar e protestar sua recusa a serem comidas. Mas a essa altura já não havia mais ninguém para ouvir seus gritos.”

Tahir Shah,

Em Noites Árabes,


Página 325 a 327

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