sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Crer ou não crer

“Não estamos sós, mas a crueza não se dissipa só porque cremos. Há fatos que não poderão ser alterados, sofrimentos que não poderão ser evitados. Mas Deus me sustenta. Minha fé não pode me colocar na ilusão de que Deus viverá por mim o que a mim cabe viver. Ele me fará perceber a Sua presença me sustentando, e só.

Essa desolação que nos ocorre quando abandonamos a infantilidade em relação à fé é muito saudável. É a partir dela que passamos a conhecer o verdadeiro papel de Deus em nossa vida. Como dizia Santo Agostinho, um Deus que me ama para que eu possa amar, que me encoraja para que eu tenha coragem. Um Deus que antecede em tudo na minha essência e que depois me dá condições de fazer o mesmo com os outros.

Quando a espiritualidade nos proporciona o conhecimento de nossas forças humana, estamos, de fato, sendo movidos pelo Sagrado. Somos o lugar onde Deus ressoa. Sua ação em nós consiste em nos fazer agir. Ele está antes de todo movimento humano, como um alicerce antecedendo e permitindo o equilíbrio das paredes. Ele é antes de nós, em nós, misteriosamente em nós. Sob Sua graça vivemos. É ela que sustenta, mas sem nunca dispensar o nosso empenho.

... Às vezes eu observo como a maneira como as pessoas rezam. Chego à conclusão de que não há transcendência naquela relação. Para muitos, a oração parece ser uma oportunidade de esclarecer a Deus o que Ele não é capaz de esclarecer sozinho. Rezamos como se estivéssemos dando ordens. Queremos determinar o agir de Deus, como se Ele não soubesse o que precisa ser feito. É uma inversão de ordem!

Nós somos sábios, conscientes de toda realidade, pedindo que Deus faça o que julgamos achar ser o melhor a ser feito. Não me adapto a essa religiosidade. Prefiro fazer da minha oração uma oportunidade de confiar a Deus as minhas necessidades. Há muito tempo preferi assumir essa postura. Sempre que eu me colocava diante de Deus como um pedinte, era natural que eu pedisse a Ele o que eu mais queria. Mas nem sempre o meu querer corresponde à minha necessidade.

O meu querer está à flor da pele, ao passo que minhas necessidades são mais profundas. Eu sei o que quero, mas nem sempre sei o que necessito, sinto-me mais honesto no reconhecimento de minha incapacidade de saber o que devo pedir. E então assumo o papel de filho que não sabe o que pedir. Mas Ele sabe o que necessito. Minha fé não me permite desrespeitar essa fronteira. Ele é Deus!

Quando insisto em dizer a Ele o que deve ser feito, alimento, ainda que inconscientemente, uma desproteção. Preciso dizer, comandar, fiscalizar, recordar, esclarecer. Deixa de ser fé, passa a ser projeção, pretensão de ser deus de Deus. Fazemos tudo isso de maneira muito cândida, com as vozes em meio-tom, simulando resignação, submissão, humildade. Mas na verdade nossas orações podem ser uma expressão de ‘neopaganismo’, uma vez que o ser humano assume o centro da relação, ficando Deus à margem.

Compreendo que essa forma equivocada de oração venha de nossa dificuldade em lidar com nossas limitações. Somos humanos, somos insuficientes. Mas não queremos ser. Diante dos limites há muitas formas de reagir. Uma religiosidade fecunda pode nos ajudar muito na lida com esses limites. A fé em Deus nos redime diariamente nos fornecendo instrumentos de superação. A fé nos reconcilia com os limites, ensinando-nos a confiança em Sua proteção. Uma proteção que se expressa no cuidado que aprendemos a ter. Sim, o limite me motiva ao cuidado.”

Padre Fábio de Melo, em

Crer ou não crer,

Páginas 23 a 26, trechos,


Pe. Fábio de Melo e Leandro Karnal, prefácio de Mario Sergio Cortella

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